Sobre tradução ou “Como você conhece Platão?”

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Provavelmente, você conhece Platão das suas aulas de filosofia. Um eminente filósofo grego que há de ter vivido há mais de um milênio no que fora à época a pólis de Atenas, hoje na Grécia. Você deve saber que, entre outras coisas, ele propôs a Teoria das Ideias: que há uma dicotomia entre a essência de algo e a sua manifestação na realidade; a essência é pura e imutável, mas inacessível aos sentidos, enquanto os objetos no mundo são meras representações imperfeitas dessas formas transcendentais. Um jeito de ilustrar essa ideia, e o papel do filósofo, é através da alegoria da caverna (ou mito da caverna): uma pessoa presa dentro de uma caverna não vê a luz e os objetos, e sim a projeção de suas sombras — meros simulacros da realidade, com muitos detalhes obscurecidos ou negligenciados. O filósofo é aquele que tenta desvendar a natureza desses objetos subjacentes, cujas sombras o acorrentado vê; seu papel é sair da caverna, e ver essas formas à sua própria luz.

“Höhlengleichnis” (“Alegoria da caverna”) — 1996, Markus Maurer. Direitos de uso sob a licença Creative Commons.

Mas isso foi o que me contaram sobre Platão. É através dos meus professores, das páginas da Wikipédia, das conversas com estudantes de filosofia e, sobretudo, das traduções de A República e O Banquete, que eu conheço Platão. Jamais li-o — não li o que escreveu Πλάτων (Platão) nos seus livros Πολιτεία (Politeia) e Συμπόσιον (Simpósion), em grego clássico.

Silhuetas na parede, não formas sob o Sol.

E é assim que eu — e quase todo mundo — conhecemos ideias e obras do mundo todo. Com o meu alemão mequetrefe, dificilmente teria lido Hermann Hesse no original. Tampouco sei russo, mas já odiei o Raskolnikóv de Dostoiévski (ou Dostoevsky, Dostoyevsky, ou como se aportuguesa Достое́вский pra você). E há outros que nem tradução explorei, mas conheço de outras formas: o livrão que é Os Miseráveis do Victor Hugo, que eu ainda não enfrentei, virou ópera, disponível no YouTube (em inglês, não no original francês — ainda bem).

São essas versões e facetas de uma obra — mas não a obra em si — que o tradutor André Lefevere chama de refrações. E entender essas refrações diz muito não só sobre o texto original, mas também sobre os receptores — nós, leitores.

A refração é o desvio da trajetória de um raio incidente em uma interface entre dois meios diferentes. “A ray of light being refracted in a plastic block”, 2014, ajizai. Direitos de uso sob a licença Creative Commons.

Assim como na física, as especificidades dessa refração dependem do meio. Quando traduzimos um texto, ou representamo-no em outro formato (filme, quadrinhos, e o diabo a quatro), essa transposição ulteriormente depende de vários fatores “ambientais”: quem traduz, quem compra e lê, quem critica e quem valida, etc.

É por isso que na ditadura brasileira, quando publicações podiam ser vetados só por aventar a ideia de comunismo, a tradução do Clube do Livro de Silas Marner adotou “A Casa Amarela” como versão de “The Red House” (a casa vermelha) onde a personagem Squire Cass vivia [2]; uma mudança inócua no texto reflete o estado de quase histeria de editores e tradutores, sustentado pelo receio da censura.

E como as refrações de uma obra carregam traços da sua época e local de publicação, muitas delas ficam datadas — muitas vezes afastando leitores por conta de preconceitos e visões de mundo antiquadas incrustadas no texto pelos tradutores à sua época. Um dos exemplos mais emblemáticos é o poema épico Beowulf, escrito em inglês antigo (ou anglo-saxão): estudado por gerações de acadêmicos — com destaque para J. R. R. Tolkien —, as traduções famosas pro inglês moderno não são livres de vieses [3]. O texto original, que ora é fragmentado e incongruente, escrito em pergaminho velino já danificado pelas intempéries do último milênio desde que foi preparado, e feito pelas mãos de dois escribas, admite outras leituras e interpretações.

Uma dessas refrações veio como a versão “revisionista” de Beowulf por Headley [4]. Usando gírias modernas(a primeira palavra na tradução dela é “Bro!”) e explorando possibilidades do texto original que foram negligenciadas por uma leitura mais escolástica, — como a possível humanidade da “monstruosa” mãe de Grendel — é uma versão que certamente ressoa mais com um público jovem ou com pouca familiaridade com o registro mais alto que as versões mais antigas empregavam.

É por isso que, às vezes estarrecendo uns e outros, novas versões do cânone são tão boas: elas são só demonstrações de que esse facho de luz, — a ideia do texto original — pode penetrar outros meios e atingir novos públicos, ou sugerir uma releitura aos mesmos velhos leitores.

Supondo que haja algo como a “intenção do autor” — formas no mundo imutável das ideias — podemos pensar esse que há níveis de compreensão progressivos. Quem lê o original e dispõe de toda bagagem historiográfica, cultural e emocional, está mais próximo de ver essa forma à luz do dia. Captar essa intenção em toda sua nuance. Quaisquer adaptações, traduções, versões, análises, e outras refrações, serão sombras nas paredes: nos revelam mais ou menos detalhes, e, por que não, também desafiam a nossa criatividade para abstrair desses detalhes o que jaz por trás.

[1] LEFEVERE, A. MOTHER COURAGE’S CUCUMBERS: Text, system and refraction in a theory of literature. In: Venuti, L. The Translation Studies Reader, 2000.

[2] MILTON, J. How to translate “The Red House”: censorship and the Clube Do Livro during the brazilian military dictatorship (1964–1985). Vol. 2 №2 (2020): Translation Matters Special Issue: Translation under Dictatorships.

[3] KIM, D. The Question of Race in Beowulf. JSTOR Daily, 2019. Disponível em: https://daily.jstor.org/the-question-of-race-in-beowulf. Acessado em: 20 dez. 2021.

[4] FRANKLIN, R. A “Beowulf” for Our Moment. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2020/08/31/a-beowulf-for-our-moment. Acessado em: 20 dez. 2021.

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Luis Fernando Fontoura de Oliveira

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