Sobre tradução ou “Como você conhece Platão?”
Provavelmente, você conhece Platão das suas aulas de filosofia. Um eminente filósofo grego que há de ter vivido há mais de um milênio no que fora à época a pólis de Atenas, hoje na Grécia. Você deve saber que, entre outras coisas, ele propôs a Teoria das Ideias: que há uma dicotomia entre a essência de algo e a sua manifestação na realidade; a essência é pura e imutável, mas inacessível aos sentidos, enquanto os objetos no mundo são meras representações imperfeitas dessas formas transcendentais. Um jeito de ilustrar essa ideia, e o papel do filósofo, é através da alegoria da caverna (ou mito da caverna): uma pessoa presa dentro de uma caverna não vê a luz e os objetos, e sim a projeção de suas sombras — meros simulacros da realidade, com muitos detalhes obscurecidos ou negligenciados. O filósofo é aquele que tenta desvendar a natureza desses objetos subjacentes, cujas sombras o acorrentado vê; seu papel é sair da caverna, e ver essas formas à sua própria luz.
Mas isso foi o que me contaram sobre Platão. É através dos meus professores, das páginas da Wikipédia, das conversas com estudantes de filosofia e, sobretudo, das traduções de A República e O Banquete, que eu conheço Platão. Jamais li-o — não li o que escreveu Πλάτων (Platão) nos seus livros Πολιτεία (Politeia) e Συμπόσιον (Simpósion), em grego clássico.
Silhuetas na parede, não formas sob o Sol.
E é assim que eu — e quase todo mundo — conhecemos ideias e obras do mundo todo. Com o meu alemão mequetrefe, dificilmente teria lido Hermann Hesse no original. Tampouco sei russo, mas já odiei o Raskolnikóv de Dostoiévski (ou Dostoevsky, Dostoyevsky, ou como se aportuguesa Достое́вский pra você). E há outros que nem tradução explorei, mas conheço de outras formas: o livrão que é Os Miseráveis do Victor Hugo, que eu ainda não enfrentei, virou ópera, disponível no YouTube (em inglês, não no original francês — ainda bem).
São essas versões e facetas de uma obra — mas não a obra em si — que o tradutor André Lefevere chama de refrações. E entender essas refrações diz muito não só sobre o texto original, mas também sobre os receptores — nós, leitores.
Assim como na física, as especificidades dessa refração dependem do meio. Quando traduzimos um texto, ou representamo-no em outro formato (filme, quadrinhos, e o diabo a quatro), essa transposição ulteriormente depende de vários fatores “ambientais”: quem traduz, quem compra e lê, quem critica e quem valida, etc.
É por isso que na ditadura brasileira, quando publicações podiam ser vetados só por aventar a ideia de comunismo, a tradução do Clube do Livro de Silas Marner adotou “A Casa Amarela” como versão de “The Red House” (a casa vermelha) onde a personagem Squire Cass vivia [2]; uma mudança inócua no texto reflete o estado de quase histeria de editores e tradutores, sustentado pelo receio da censura.
E como as refrações de uma obra carregam traços da sua época e local de publicação, muitas delas ficam datadas — muitas vezes afastando leitores por conta de preconceitos e visões de mundo antiquadas incrustadas no texto pelos tradutores à sua época. Um dos exemplos mais emblemáticos é o poema épico Beowulf, escrito em inglês antigo (ou anglo-saxão): estudado por gerações de acadêmicos — com destaque para J. R. R. Tolkien —, as traduções famosas pro inglês moderno não são livres de vieses [3]. O texto original, que ora é fragmentado e incongruente, escrito em pergaminho velino já danificado pelas intempéries do último milênio desde que foi preparado, e feito pelas mãos de dois escribas, admite outras leituras e interpretações.
Uma dessas refrações veio como a versão “revisionista” de Beowulf por Headley [4]. Usando gírias modernas(a primeira palavra na tradução dela é “Bro!”) e explorando possibilidades do texto original que foram negligenciadas por uma leitura mais escolástica, — como a possível humanidade da “monstruosa” mãe de Grendel — é uma versão que certamente ressoa mais com um público jovem ou com pouca familiaridade com o registro mais alto que as versões mais antigas empregavam.
É por isso que, às vezes estarrecendo uns e outros, novas versões do cânone são tão boas: elas são só demonstrações de que esse facho de luz, — a ideia do texto original — pode penetrar outros meios e atingir novos públicos, ou sugerir uma releitura aos mesmos velhos leitores.
Supondo que haja algo como a “intenção do autor” — formas no mundo imutável das ideias — podemos pensar esse que há níveis de compreensão progressivos. Quem lê o original e dispõe de toda bagagem historiográfica, cultural e emocional, está mais próximo de ver essa forma à luz do dia. Captar essa intenção em toda sua nuance. Quaisquer adaptações, traduções, versões, análises, e outras refrações, serão sombras nas paredes: nos revelam mais ou menos detalhes, e, por que não, também desafiam a nossa criatividade para abstrair desses detalhes o que jaz por trás.
[1] LEFEVERE, A. MOTHER COURAGE’S CUCUMBERS: Text, system and refraction in a theory of literature. In: Venuti, L. The Translation Studies Reader, 2000.
[2] MILTON, J. How to translate “The Red House”: censorship and the Clube Do Livro during the brazilian military dictatorship (1964–1985). Vol. 2 №2 (2020): Translation Matters Special Issue: Translation under Dictatorships.
[3] KIM, D. The Question of Race in Beowulf. JSTOR Daily, 2019. Disponível em: https://daily.jstor.org/the-question-of-race-in-beowulf. Acessado em: 20 dez. 2021.
[4] FRANKLIN, R. A “Beowulf” for Our Moment. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2020/08/31/a-beowulf-for-our-moment. Acessado em: 20 dez. 2021.